Introdução
Os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) são os antidepressivos mais utilizados no tratamento dos transtornos do humor em pacientes com miocardiopatia isquêmica. Os dados sobre a segurança cardiovascular em pacientes com evento cardíaco agudo são provenientes de estudos randomizados com seguimento de até seis meses. Os resultados de estudos sobre a associação de ISRS e risco cardíaco são inconsistentes e vem de estudos caso-controle. Até o presente momento, nenhum estudo avaliou os efeitos dos ISRS sobre o risco cardíaco em pacientes com depressão após uma síndrome coronariana aguda (SCA). O estudo Depression in Patients with Coronary Artery Disease (DECARD) avaliou se o uso profilático de escitalopram previne a ocorrência de quadros depressivos após uma SCA. Os resultados deste sugerem que isto é possível, já que, após um ano de tratamento com escitalopram, houve redução significativa da incidência de depressão e sintomas depressivos. A depressão dos pacientes com miocardiopatia isquêmica atende aos critérios para intervenção preventiva, já que a doença possui prevalência suficiente e representa uma sobrecarga à saúde que justifica o risco e o custo da intervenção. Existem poucos dados a respeito da prevenção primária da depressão em geral e nenhum no contexto de pacientes com SCA. Talvez, isso se deva ao fato que a prevenção se aplique às doenças físicas e não às mentais. A depressão e os sintomas depressivos são mais contemplados no contexto de prevenção secundária ou terciária. As intervenções farmacológicas para evitar a depressão posterior a uma SCA podem afetar diversos resultados: depressão, morbidade e mortalidade cardiovascular. O objetivo do presente estudo foi descrever a segurança e a tolerância do tratamento durante um ano com escitalopram em pacientes com SCA, relacionando com achados eletrocardiográficos, níveis do fragmento N-terminal do peptídeo natriurético cerebral (NT-proBNP), parâmetros ecocardiográficos, incidência de eventos cardiovasculares e de eventos adversos. Além disso, foi realizada uma análise de resultados pré-determinados em diversos domínios clínicos.
População e métodos
O DECARD foi um estudo duplo-cego, randomizado e controlado com placebo para avaliar os efeitos do escitalopram em pacientes sem depressão internados por SCA. A hipótese primária foi que a incidência de depressão poderia ser reduzida com o uso profilático de escitalopram logo após o diagnóstico de SCA. Este diagnóstico foi feito de acordo com as recomendações atuais e incluiu o infarto agudo do miocárdio (IAM) com supradesnivelamento do segmento ST (IAMCSST), o IAM sem supradesnivelamento de ST (IAMSSST) e angina instável. Durante três anos foram selecionados 725 pacientes que atendiam os critérios de inclusão do estudo: um terço deles (n = 240) aceitou participar do estudo, os quais foram randomizados para receber escitalopram 10 mg/dia ou placebo durante um ano. Inicialmente, foi realizada uma anamnese estruturada para avaliar a presença de transtornos mentais, entre eles, a depressão. A prevalência de sintomas depressivos foi avaliada pela Escala de Depressão de Hamilton de 17 itens (HAMD-17) no início do estudo, com 6 e 12 meses de seguimento. A pontuação variou de 0 a 52; 0 a 7 corresponde à ausência de depressão. Pontuações acima de 7 (8-12) corresponde a sintomas depressivos menores; pacientes com pontuação acima de 12 foram excluídos do estudo. Todos os indivíduos também foram submetidos a outras avaliações psiquiátricas em intervalos regulares durante o ano de seguimento. Avaliações cardiológicas foram realizadas no início do estudo, com 6 e 12 meses, com exceção do ecocardiograma que foi realizado no início e após 12 meses. Os pacientes realizaram Holter 24 horas e foi avaliada a presença e frequência de extrassístoles ventriculares (ESV). Foram utilizadas as seguintes definições: ESV frequentes (> 10/hora), pareadas (2 ESV consecutivas) e taquicardia ventricular não sustentada (≥ 3 ESV consecutivas com frequência ≥ 100 bpm). Episódio de infradesnivelamento do segmento ST foi definido como descenso ou depressão horizontal do segmento ST ≥ 1 mm, determinado 60 ms após o ponto J, durante pelo menos um minuto. Foi realizado um eletrocardiograma (ECG) de 12 derivações em repouso com velocidade de papel de 25 mm/s e amplitude de 1 mV/cm. Foi avaliada a condução atrioventricular e intraventricular. O intervalo QT foi determinado manualmente, com resolução de 4 ms. Foram determinados os intervalos QT consecutivos nas 12 derivações do ECG. Foram necessárias pelo menos 9 derivações legíveis para realizar esta determinação, sendo utilizado o valor médio de todos os intervalos medidos e foi corrigido o intervalo para a frequência cardíaca pela fórmula de Bazet. Foi coletado sangue para determinação dos níveis de NT-proBNP. O ecocardiograma foi realizado para avaliar a função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo, assim como a fração de ejeção do ventrículo esquerdo. Foram coletados dados sociodemográficos, de estilo de vida, classe funcional da New York Heart Association (NYHA) e da Canadian Cardiovascular Society (CCS) para angina. Os pacientes foram classificados como sintomáticos ou assintomáticos (NYHA 1 vs. NYHA 2-3 e CCS 0 vs. CCS 1-4). Foi calculado o índice de massa corpórea (IMC) e foram medidas a pressão arterial, os níveis de colesterol total, LDL, HDL, glicemia e creatinina. O evento cardíaco maior foi definido com a combinação de mortalidade por todas as causas, reinternação por SCA recorrente e revascularização não programada. Esta última incluiu intervenção coronariana percutânea e cirurgia de revascularização miocárdica. O conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade de seu(s) autor(s) e produtor(es). Produzido pela Sociedade Iberoamericana de Informação Cientifica, sob encomenda da Torrent, em dezembro de 2013. Copyright © Sociedad Iberoamericana de Información Científica (SIIC), 2013 Indexado na SIIC Data Bases – www.siicsalud.com/dato/resiic.php/137663 Edição em Português feita pela SIIC Brasil Em cada visita foram avaliados os eventos adversos gerais, os graves e a tolerância. A análise foi feita pela intenção de tratar e foram considerados significativos valores de p < 0,05.
Resultados
Foram randomizados 240 pacientes para receber escitalopram 10 mg/dia ou placebo. Foi excluído um paciente do grupo placebo por violação do protocolo. Não houve dados completos dos seguimentos de 6 e 12 meses por abandono do estudo (abandono ou perda de acompanhamento) em 65 pacientes (27,2%), óbito (n = 4; 1,7%) ou por ter atingido o desfecho primário (depressão) (n = 12; 5%). Não houve diferenças significativas entre as taxas de abandono em ambos os grupos (29,2% no grupo tratado com escitalopram e 25,2% no grupo que recebeu placebo), assim como não houve associação com idade, sexo, pontuação na escala HAMD-17, tipo de SCA (IAMCSST, IAMSSST ou angina instável) ou sintomas (NYHA ou CCS). Os motivos para o abandono do estudo foram supostos eventos adversos (n = 13; 5,4%), retirada do consentimento informado sem motivo conhecido (n = 39; 16,3%) e perda do acompanhamento (n = 13; 5,4%). A maioria dos abandonos ocorreu nos primeiros seis meses. No grupo escitalopram, 87 (72,5%) pacientes completaram 6 meses de seguimento, comparados com 84 (70,6%) pacientes no grupo placebo. As taxas de finalização do seguimento de 12 meses foram de 66,7% (n = 80) e 65,5% (n = 78), respectivamente. A média de tempo entre a internação por SCA e a randomização foi de 24,9 dias (desvio padrão: 21,7), sem diferenças entre os grupos. Também não houve diferença entre os grupos quanto à idade, sexo, fatores de risco cardiovasculares, procedimentos de revascularização ou antecedentes de doença cardiovascular. O diagnóstico foi IAMCSST em 33,1% dos casos, IAMSSST em 34,3% e angina instável em 32,6%. O número médio de fármacos concomitantes utilizados foi de 5,6±1,5. Pontuações iniciais da HAMD-17 entre 8 e 12 esteve presente em 21 (17,5%) dos pacientes do grupo escitalopram e em 19 (16%) dos pacientes do grupo placebo. Não houve diferenças quanto à incidência de arritmias ventriculares ou episódios de infradesnivelamento do segmento ST no Holter 24 horas, nos parâmetros ecocardiográficos de função sistólica e diastólica ou na incidência de sintomas. Os parâmetros do ECG em repouso não mostraram diferenças relacionadas com a intervenção. Também não houve diferenças entre os grupos em termos de perfil lipídico, glicemia ou níveis de sódio e creatinina após um ano do estudo; por outro lado, os níveis de NT-proBNP diminuíram significativamente após um ano (p < 0,001). A incidência de eventos cardíacos maiores não diferiu entre os grupos. No total, 29 pacientes (12,1%) dos 239 indivíduos do DECARD apresentaram um evento. As taxas de eventos em um ano foram de 13,3% no grupo escitalopram e 10,9% no grupo placebo (p = 0,59). Houve quatro óbitos (3 no grupo escitalopram e 1 no grupo placebo) durante o estudo, e cinco óbitos (3 no grupo escitalopram e 2 no grupo placebo) após o término do estudo. Um paciente do grupo placebo faleceu após ter apresentado o desfecho principal (depressão). De acordo com dados do registro civil dinamarquês, 2 dos 13 pacientes em que o seguimento foi perdido, faleceram dentro de um ano da randomização. Um paciente era do grupo escitalopram e faleceu por câncer de pâncreas; e o outro era do grupo placebo e não foi possível determinar a causa do óbito. O único sintoma que ocorreu com maior frequência no grupo escitalopram foi maior atividade onírica. Os eventos adversos mais frequentes no estudo foram maior cansaço e fadiga. Não foram registrados eventos adversos graves.
Discussão
O estudo DECARD mostrou que o uso de escitalopram em pacientes com doenças cardiovasculares é seguro e bem tolerado. O tratamento com escitalopram 10 mg/dia iniciado imediatamente após uma SCA e mantido por um ano não se associou com eventos adversos cardiovasculares graves. Não se observou maior risco de arritmias, sintomas de IC, angina ou infradesnivelamento do segmento ST. Também não houve efeito sobre a função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo. Ainda, não foram observados casos de hipotensão arterial, bradicardia, hiponatremia e hipercolesterolemia, como descrito em outros estudos. Não foram identificados casos de suicídios entre os dez óbitos. O evento adverso mais frequente foi o aumento da atividade onírica. O tratamento atual dos pacientes que apresentaram SCA inclui o uso de diversos fármacos, o que implica em risco de interações entre eles e os ISRS; o escitalopram apresenta efeito inibitório mínimo sobre o sistema enzimático do citocromo P450, o que diminui o risco de interações farmacológicas. Os resultados do DECARD mostraram uma ação profilática significativa contra a depressão após SCA: 5,8% (n = 7) no grupo escitalopram e 14,3% (n = 17) no grupo placebo desenvolveram depressão ou sintomas depressivos significativos no período de 1 ano. Além do efeito sobre a depressão, este estudo demonstrou que o escitalopram evita a ocorrência de depressão posteriormente a uma SCA. Os resultados suportam os dados já conhecidos sobre a segurança do uso dos ISRS em longo prazo. Os ISRS constituem o tratamento de primeira linha para a depressão, porém as evidências sobre seu efeito cardioprotetor são inconsistentes. O tempo médio entre a internação por SCA e o início do tratamento com escitalopram foi de 26,2 dias. Cabe destacar que o estudo DECARD é um estudo de prevenção, motivo pelo qual foram utilizadas doses baixas de escitalopram, o que explica, em parte, as diferenças de resultados em relação a outros estudos. Também se deve mencionar que o estudo não teve o poder estatístico necessário para detectar um efeito sobre a incidência de mortalidade ou eventos cardiovasculares. Os resultados indicam que o escitalopram não diminui a morbidade nem a mortalidade, o que pode estar de acordo com a noção de que a melhora da depressão não significa melhores desfechos cardiovasculares; embora talvez fosse necessário um período mais prolongado de seguimento para esta avaliação. A taxa de abandono do estudo foi elevada (27,2%), embora comparável às observadas em outros estudos. Ao excluir os óbitos e a suspensão por atingir o desfecho primário (depressão), 72,8% dos pacientes completaram o seguimento de um ano. As taxas de abandono podem ser explicadas de diversas formas. Os pacientes não apresentavam depressão, assim, a falta de eficácia não é um motivo para o abandono. Os estudos de prevenção geralmente estão associados a baixas taxas de inclusão e altas taxas de abandono. Por outro lado, este estudo teve como intenção evitar um transtorno psiquiátrico, o que pode se relacionar com medo de ficar estigmatizado ou ser marginalizado.
Repercussões clínicas
Os resultados indicam que os ISRS não apresentam efeitos significativos sobre o sistema cardiovascular. Estes resultados devem ser interpretados sob três aspectos. Primeiro, o estudo demonstrou que o escitalopram é uma intervenção profilática para tratar os sintomas depressivos e a depressão após uma SCA. Segundo muitos pacientes com depressão apresentam sintomas depressivos menores, que podem progredir para depressão. Terceiro, o uso do escitalopram é seguro, do ponto de vista cardiovascular, após uma SCA. Aproximadamente 70-80% dos pacientes após SCA não apresentam depressão. Este estudo poderia ampliar as indicações do escitalopram para pacientes com SCA e alto risco de depressão. Os resultados apresentados devem ser corroborados em estudos maiores e de longo prazo, e também se deve avaliar a relação custo-benefício da intervenção.
Conclusão
O tratamento com escitalopram por um ano é seguro e bem tolerado pelos pacientes com SCA.